Apresentaremos hoje uma interpretação da música FÁBRICA da banda Legião Urbana. A música pode ser usada em sala de aula para instigar um debate sobre a Revolução Industrial. A seguir mostraremos um clip da música onde usamos como imagem passagens do filme TEMPO MODERNOS de Charles Chapim. Em seguida disponibilizamos a letra da música e depois uma interpretação feita pelo professor Marxwel Alves Pantaleão.
Fábrica - Legião Urbana (Composição: Renato Russo)Nosso dia vai chegar
Teremos nossa vezNão é pedir demais:Quero justiçaQuero trabalhar em pazNão é muito o que lhe peço –Eu quero um trabalho honestoEm vez de escravidãoDeve haver algum lugarOnde o mais forte nãoConsegue escravizarQue não tem chanceDe onde vem a indiferençaTemperada a ferro e fogo?Quem guarda os portões da fabrica?O céu já foi azul, mas agora é cinzaO que era verde aqui já não existe maisQuem me dera acreditarQue não acontece nada de tanto brincar com fogoQue venha o fogo entãoEsse ar deixou minha vista cansadaNada demais
A princípio, a canção começa na primeira pessoa do plural, logo depois
do terceiro verso já toma a palavra uma primeira pessoa do singular. Só que
essa pessoa fala para alguém que não participa da primeira voz no plural. A
julgar pelo título da música poderíamos dizer que um sindicalista fala aos seus
pares que ainda há esperança e vai ao patrão exigir o mínimo para seu trabalho.
Porém esse líder se perde no meio de seus questionamentos e todas as vozes
desaparecem, restando apenas o olhar ao redor e, junto com o reconhecimento, o
ímpeto e a morte.
Um ciclo comum, como o era nas canções de Renato, que tinha como fim o
suplício de sua continuação. O que é demais nas lutas de classe de Marx no
Brasil de 1986? O que a redemocratização brasileira estava planejando para
continuar a industrialização promovida pela ditadura? Após os gritos de que país
é esse, o que se esperar de um presidente não eleito pelo povo com uma “herança [de] uma
dívida externa de 100 bilhões de dólares e uma inflação de 230%”? (CAVANA,
2000, p. 340). O que cada indivíduo poderia querer ou esperar?
Sob a metáfora de uma fábrica, os “eus” protestavam não só contra a
situação do país, mas contra uma inércia pessoal que pairava no Brasil da
Legião Urbana. Os dêiticos usados na canção deixam bem claro que os que se
achavam alheios à música é quem fala por ela, assim o auditório e seu orador se
fundiam e confundiam-se. “Nosso dia vai chegar / teremos nossa ver”,
aqui é importante ressaltar que o orador se colocou de igual ao seu auditório,
dando início à fundição. O primeiro poderia muito bem dizer: “o dia de vocês
irá chegar, vocês terão a sua vez”, mas não, ele deu um valor a essa
comunicação que proporcionou ao orador ser a voz de seu público.
Esse efeito comunicacional se deveu ao fator de o autor escolher esse
ato de fala e não o outro. Pois a situação é a mesma para todo mundo, ninguém
até então tinha direito a nada, tanto que a única coisa que os ligavam, além do
problema, era a esperança de uma solução. E com uma anáfora, mais
precisamente uma catáfora, lastima um direito (e não um dever), “não é pedir
demais:”, assim mesmo, com dois pontos no fim do verso. Em seguida suas
reivindicações: “quero justiça /quero trabalhar em paz”. Retoma que seu
desejo é simples, não é demasiado o que ele e seu auditório querem, “não é
muito o que lhe peço –” e após um travessão a continuação de
sua solicitação: “eu quero um trabalho honesto / em vez de escravidão.”.
O verbo querer pressupõe o desejo de algo que não se tem. Se alguém quer
uma laranja, já possuindo onze, quer ter uma dúzia, ou seja, quer ter mais. Se
alguém, que não tem nenhuma laranja, quer uma, seu desejo é ter algo que não
possuía, quer mais, pois não tinha nada. Justiça não é concreto como uma
laranja, mas a falta dela é muito palpável e o sofrimento evidente. Esse “eu”
que fala em nome do “nós” denuncia a falta de justiça e de paz para trabalhar.
Em seguida o orador continua a denúncia: ele e seus pares são escravos de um
trabalho desonesto. Qual trabalho seria esse? Onde ele fica? Para responder a
essas perguntas, nos remeteremos ao título da canção, numa única resposta: Fábrica!
Essa metáfora nos revela ser uma metonímia. Mas, ao invés da parte pelo todo,
uma metonímia do todo pela parte: toda ação de construção social é a fábrica.
São todos as espécies de trabalhos e empregos que podemos conceber, seja como
músico, pedreiro, industrial, estudante, dona de casa. Em todos há uma fábrica
de sonhos e pesadelos. Em todos podemos ser livres e honestos ou escravos no
meio de injustiças. Essa relação fica mais clara nos versos seguintes: “deve
haver algum lugar / onde o mais forte / não consegue escravizar / quem não tem
chance.”.
Nessa parte do nosso texto, o leitor, provavelmente, deve ter notado a
forma como pontuamos os versos da canção. Pois bem, fora proposital. Chamamos a
atenção dos sinais de pontuação contidos na letra dessa canção, os dois pontos
e o travessão, agora, enfatizamos o ponto final, tanto após a primeira estrofe,
que termina em “em vez de escravidão.”, quanto nessa segunda, que
termina em “quem não tem chance.”, marcam mudanças no acorde. A música
tem uma base em duas notas, que desde a introdução até o momento onde o orador
começa a pedir o que não é demais, são as mesmas duas notas. Quando do início
de suas reivindicações, a canção passa a ter outros acordes lhe sustentando,
uma ruptura e uma mudança visível (ou melhor, audível). Ao iniciarmos esses
versos, que encerraram o parágrafo anterior a esse, as bases voltam, novamente
as duas notas que soaram no início mais uma vez sustentam a canção.
A mesma esperança do início, que uniu orador e auditório, se transforma
em questionamentos comuns a ambos: deve haver esse tão sonhado lugar onde
aqueles que são fracos não serão escravizados pelos mais fortes. Uma alusão
bíblica que nos remete a várias passagens da mesma. Dentre elas, selecionamos o
sermão da montanha, o qual suas “bem-aventuranças são o anúncio da
felicidade, porque proclamam a libertação, e não o conformismo ou a alienação”
(STORNIOLO, 2001, P.1242). A bíblia, como sendo uma grande fábrica de esperança
e fé, também entra na crítica e encorpa o coro por justiça e paz.
Na próxima estrofe, um outro acorde. Esse, na estrutura sonora, funciona
com desfecho e prepara para recomeçar a seqüência de acordes até então tocadas.
É justamente quando o orador questiona a violência, essa que é responsável por
injustiças e pela ausência da paz. “De onde vem a indiferença / temperada a
ferro e fogo? / quem guarda os portões da fábrica?”, com esse primeiro
verso, temos a nítida impressão de que não se trata de um protesto comunista,
de uma cobrança por igualdade. Não é a diferença que mais incomoda os
interlocutores nessa canção, e sim a indiferença.
E esse é o sentimento chave da canção: a indiferença. É essa quem
transforma a libertação em conformismo e alienação. Uma indiferença
condicionada a ferro e fogo, metáforas de violência. Forçando um pouco mais a
interpretação, pode-se julgá-las como armas da repressão que tomaram conta do
país até aquele momento histórico. Ainda vemos, de forma subentendida,
elíptica, o operador argumentativo mas. De onde vem toda essa injustiça
condicionada e imposta? Mas quem é mesmo que controla toda a produção? Quem
abre as portas das construções sociais? O orador é uma fábrica. Cada um de seu
auditório é outra fábrica. Cada indivíduo pode produzir qualquer coisa. A
indiferença é o ponto comum na relação entre a fábrica e o mundo onde está
inserida.
Mais à frente, uma relação ambígua de sentido. Em evidência a
consciência de preservação, o orador dos versos seguintes poderia estar
protestando contra a poluição. Mas essa parte é a volta dos primeiros acordes,
aqueles dois acordes da introdução que representam o discurso do orador e seus
pares. Os operadores “já” (somado ao verbo “foi”), “mas” e
“agora”, usados nessa estrofe, reforçam uma posição discursiva onde o
orador quer introduzir uma mudança de estado e pressupõe, com ajuda dos signos
e significações das cores azul, cinza e verde, que o que havia antes era melhor
do que há hoje. Indo, inclusive, além disso, na verdade, hoje não há mais. Após
toda aquela indiferença temperada a ferro e fogo acabou com a alegria, o azul e
com a esperança, o verde. Assim, “o céu já foi azul, mas agora é cinza / e o
que era verde já não existe mais.”, podem ser versos de ambígua
interpretação, pois os signos invocados têm essa características polissêmicas.
Em vários ditos populares, envolvendo o ato de brincar com o fogo, trás
como moral uma conseqüência não agradável. Ainda mais quando se é criança,
idade em que o fogo é um grande atrativo, nunca se acha que os ditos sejam
verdades, que acontecem mesmo com quem se atreve a brincar e desafiá-los. O
orador, ao aproximar-se do fim de sua oratória, joga com essas pueris
lembranças, que no fim não são nostálgicas, mas o reconhecimento de uma certa
maturidade. Mesmo sabendo que acontece algo quando se brinca com fogo, pois
fica claro que o orador crê que a conseqüência existe, ele desafia e se propõe
a lutar: “quem me dera acreditar / que não acontece nada de tanto brincar
com fogo/ que venha o fogo então”. Esse último verso demonstra um desejo do
orador. Essa afirmação está baseada na sua construção frasal, onde o uso do
verbo no modo subjuntivo venha e o uso do denotador de
situação (BECHARA, 2004, p. 291) então proporciona esse efeito
argumentativo.
Os dois versos seguintes são os últimos. Os acordes dessa parte são os
mesmos dos versos “de onde a indiferença/ temperada a ferro e fogo?”, e
mais uma vez podemos apreender da metáfora utilizada uma violência sofrida pelo
orador, e também por seus pares, já que aquele é o porta-voz de todos, “esse
ar deixou minha vista cansada, / nada demais”. Aqui podemos enveredar por
vários caminhos, vária possibilidades de sentido, uma especialidade da
literatura que vagueia sem permissão nas canções mais elaboradas, com uma letra
mais compromissada com a língua e cultura.
A vista se cansou por conta desse ar. O elemento
anafórico refere-se a quê? O mais próximo de ar é o cinza do céu, que nos
remete a poluição atmosférica. Mas o que é “vista cansada”? Musicalmente
dividimos a canção em duas partes. Assim também se divide a letra. A voz
inicial começou cheia de ímpeto e questionamentos. Mas no decorrer da canção
percebemos que o ativismo vai enfraquecendo. E no fim um sinal de uma aparente
derrota. Mas não é nada demais. O que parece ser apenas um lamento, pode ser
lido como protesto, no sentido da efemeridade das coisas ou ainda se ousarmos
em analisar a canção sob o ponto de vista de uma narrativa.
Podemos supor que o enredo dessa canção não esteja em sua ordem linear.
Assim, a primeira parte seria o que acontece depois e o que deveria ser o
desfecho é na verdade a complicação. A vista ficou cansada por causa desse ar
que a deixou assim, nada demais. Ao lermos “vista cansada” como metáfora
de morte, o que não é nada de mais acaba se tornando motivo de protesto, daí um
orador, uma voz, se fundindo e confundindo com seu auditório. Uma morte não é
demais como também não é demais pedir justiça e paz. Mas de onde vem, então,
essa indiferença?
Vem de dentro de cada um. Vem das relações entre esses e desses com o
mundo. Vem das fábricas e de seus trabalhadores, que poluem o ar e matam o
verde, para sobreviverem, o que pode não acontecer de forma esperada, já que o
próprio ar cansa as vistas de quem vê. Fábrica não é só uma
canção de protesto contra a poluição da natureza ou a injustiça humana. Vai
além de simples gritos e súplicas por um trabalho digno. Deve haver um lugar
sem escravidão e esse lugar pode ser na fábrica de sonhos e esperanças reais de
uma vida sadia para todos, mas quem guarda os portões dessa fábrica?
(Texto de Marxwel Alves Pantaleão)
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